o Brasil não é tendência — é origem
De Liniker a Beyoncé, das favelas à passarela: o que o mundo aprende quando a periferia lidera a conversa
Existe algo em movimento. Algo que está atravessando fronteiras, questionando centros hegemônicos e ressignificando o que é ser brasileiro no mundo. Em meio a um cenário em que marcas e indústrias ainda tateiam para criar conexões autênticas, são os movimentos culturais periféricos que vêm ocupando espaços globais com criatividade, voz e consistência.
Do funk aos editoriais de moda, das estéticas das favelas às vitrines internacionais, da ancestralidade afrofuturista à curadoria de novos desejos — estamos falando de uma retomada. Uma retomada das raízes, da identidade, das narrativas que por muito tempo foram invisibilizadas. Essa movimentação não é individual: é coletiva, é rede. E é aqui que as lideranças plurais ganham espaço, propondo soluções criativas mais humanas e inovadoras, porque nascem da fricção, da vivência, da diversidade de olhares.
Todo brasileiro já reclamou do país. Mas basta um comentário negativo vindo de fora, que a gente vem com uma lista de argumentos defendendo que somos o melhor lugar do mundo. (Com exceção da Odete Roitman, claro.) Por anos, o amor à camisa do Brasil parecia ter esfriado. Mas foi da periferia que surgiu um movimento que devolveu com força o orgulho de vestir nossas cores: o Brazilcore. Mais do que uma tendência de moda, o Brazilcore é uma afirmação cultural que resgata o verde, o amarelo e o azul como estética e identidade, reapropriando-se de um símbolo nacional que havia sido sequestrado por discursos de polarização política. Com forte influência das comunidades e da cultura urbana, o movimento ganhou espaço nas redes sociais, principalmente no TikTok, e foi rapidamente adotado por celebridades no Brasil e no mundo.
De Anitta no Coachella a Lady Gaga no Gagacabana, de Hailey Bieber em posts virais às campanhas com Djonga e MC Hariel para a Nike, o Brazilcore virou febre global. Esse estilo sempre existiu nas favelas como expressão de autoestima. A moda, que por anos olhou para a periferia com desconfiança, agora precisa reconhecer: foi na margem que nasceu uma das estéticas mais impactantes da década.
A favela virou referência de estilo. E o estilo virou potência de narrativa.
A moda, como expressão social, está mais atenta às estéticas que nascem fora dos eixos. Do athleisure à alta-costura, o funk também acompanha esse movimento, ganhando espaço em desfiles da Louis Vuitton, Mugler e nos conteúdos virais da Jacquemus. A trilha sonora de uma das campanhas globais da Apple, com Pedro Pascal e direção de Spike Jonze, também foi embalada pelo ritmo do funk brasileiro.

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Nesse contexto, vale também abrir espaço para reflexão sobre quem está — ou melhor, quem continua fora — das decisões que moldam essas campanhas globais. A recente campanha da Rabanne, que utilizou o funk como linguagem e estética, gerou um debate importante, levantado por @OgumDoce: estamos celebrando a potência cultural brasileira ou apenas reenquadrando estéticas periféricas para o consumo global, mantendo os criadores autênticos à margem do processo? A reflexão dele propõe uma leitura crítica que recomendamos fortemente. Termos como "gentrificação estética" nos ajudam a entender como elementos antes considerados "cafonas" ou "marginalizados" são revalorizados por elites criativas, enquanto jovens negros e periféricos — que vivem e criam esses códigos — seguem, em sua maioria, fora das lideranças estratégicas e criativas. O impacto é bonito, mas a transformação real só acontece quando o protagonismo e as decisões também mudam de mãos.
Mas por que tanto interesse pelo funk e pela cultura brasileira? Porque o Brasil é, hoje, um dos maiores motores de engajamento do mundo. Só no TikTok, somos 105,3 milhões de usuários, segundo dados da Statista — plataforma alemã especializada na coleta e visualização de dados. Somos o terceiro maior mercado da plataforma, atrás apenas da Indonésia e dos Estados Unidos. E o funk está no centro desse movimento: 50% dos artistas favoritos da Geração Z brasileira fazem parte desse gênero, segundo levantamento da Banana Music. Gostamos de criar, gostamos de participar e, acima de tudo, gostamos de ser vistos.
E as marcas sabem disso. Durante a campanha de "Ainda Estou Aqui", no Oscar, os conteúdos com Fernanda Torres foram os que mais engajaram no perfil do The Academy. Quase 3 milhões de curtidas e mais de 845 mil comentários em um único post durante o Governors Awards. Para efeito de comparação, o segundo post com maior engajamento — com Kate Winslet —mal ultrapassou as 100 mil curtidas. Isso não é coincidência: é uma estratégia baseada na certeza de que o Brasil movimenta, reage, engaja e transforma presença digital em narrativa coletiva.
Não é ingenuidade que marcas globais estejam apostando no funk como trilha. Elas entenderam que engajamento não se compra, se constrói. E a chave disso tudo é uma palavra que conhecemos bem: comunidade.
E uma das maiores artistas do planeta está atenta ao movimento de retomada e ocupa a linha de frente dessa reconstrução cultural. No álbum Cowboy Carter, Beyoncé propõe uma releitura do country sob uma perspectiva negra e plural. Com a faixa "Spaghettii", que sampleia o funk brasileiro "Aquecimento das Danadas", de uma das lendas do gênero, DJ O Mandrake, ela celebra a rebeldia criativa, a liberdade de expressão e a recusa em se conformar às normas sociais. A música é uma ode à autonomia e à potência de viver sob seus próprios termos, conectando-se diretamente com o sentimento coletivo de ocupação de espaços e narrativas.
E, como não poderia deixar de ser, recentemente a artista incorporou mais um funk brasileiro em sua tour: "Essa tá quente", do DJ Mimo Prod. Um gesto que está longe de ser apenas estético ou sonoro — é estratégico, é cultural, é coletivo.
É dessa frase, projetada no telão da tour de Beyoncé, que extraímos o espírito desse novo tempo. E também o elo direto com outro álbum: “Indigo Borboleta Anil”, da Liniker. Recheado de sonoridades negras como samba rock, hip hop, jazz e samba, o disco é uma ode às suas origens, à sua família e a quem ela se tornou. Como diz a própria artista: “É um disco preto, é um disco de black excellence”.
Liniker canta sobre si, sobre o amor, sobre a própria cachorra Clau e sobre o direito de ser debochada. Ela canta para se humanizar e para ser vista como é: inteira. Ao fazer isso, inaugura um lugar de afeto e pertencimento também para outras pessoas que nunca se viram representadas com verdade.
Foi com esse álbum que se tornou a primeira artista trans a vencer um Grammy Latino, e se consolidou como uma das vozes mais importantes do Brasil no movimento de retomada das narrativas negras e trans. Como Beyoncé, Liniker não pede permissão para existir. Ambas criam, reivindicam, desafiam. E, ao serem, iluminam caminhos para que outros existam com liberdade, afeto e potência.
Três nomes contemporâneos, emblemáticos e radicalmente singulares ajudam a traduzir esse momento de transformação cultural que atravessa gerações e geografias. Assim como Liniker e Beyoncé, Rafaela Pinah, Igi Lola Ayedun e Nídia Aranha estão ressignificando suas vivências em forma de linguagem, estética e conceito. Cada uma, com sua trajetória única, oferece uma perspectiva de vanguarda no mercado criativo atual.
Rafaela Pinah, stylist e diretora criativa à frente do Coolhunter Favela, nasceu em Realengo e é uma das vozes mais afiadas da moda periférica brasileira. Com o Coolhunter, é pioneira em inserir o reflexo alinhado como estética de identidade em campanhas para marcas como Heineken, Farm Rio e Kenner, remontando a autoestima favelada por meio da beleza. Sua Casa Tok é mais do que um espaço expositivo: é um polo cultural onde moda, educação e memória se entrelaçam como ferramentas de futuro.
Entre seus projetos, destaca-se a pesquisa e editorial sobre a cultura dos bate-bolas nas regiões de Bangu, Padre Miguel e Realengo, em que valoriza essas expressões como potentes linguagens estéticas e políticas da cidade. “Essa cultura me coloca pra cima, num lugar que entendo que é possível chegar, que é possível a gente contar a nossa história para outros continentes e enriquecer mais ela”, disse em entrevista ao Hypebeast. Em 2023, foi reconhecida como Voz do Ano pela plataforma Papel & Caneta.
Igi Lola Ayedun, fundadora da HOA (House of Ayedun), é pioneira ao criar a primeira galeria de arte black owned do Brasil (que agora é uma organização sem fins lucrativos). Autodidata, artista visual e ex-jornalista de moda, Ayedun combina afrofuturismo, tecnologias ancestrais africanas, pigmentos naturais e materiais orgânicos para propor novas cartografias simbólicas e estéticas para artistas racializados. Sua prática não só confronta as exclusões históricas do sistema da arte, como também apresenta uma nova imagem do Brasil para o mundo, com passagens por cidades como Paris, Cairo, Bruxelas e Berlim. Ao internacionalizar sua produção e a de outros artistas da periferia global, Igi reposiciona o olhar sobre quem produz, circula e transforma cultura.
Nídia Aranha, artista e diretora de arte, foi reconhecida pelo British Fashion Council como uma das vozes visionárias moldando os novos horizontes da moda. Em sua trajetória, une provocação e sensibilidade para romper com estéticas normativas e propor novas formas de expressão. Como ela mesma afirma: "Como artista e uma diretora travesti brasileira, ocupar esse espaço internacional não é apenas uma conquista pessoal. Nossa arte nasce da peleja, da correria, mas acima de tudo da força em nossa rede de afetos e talentos que me inspira e me transforma continuamente".
Em campanhas como a da Deezer, gravada no Brasil, a artista participou de uma produção que transformou uma luta de boxe em uma batalha de dança, combinando os estilos do voguing e do waacking, elementos originados da cultura ballroom. Essa expressão autêntica só foi possível graças a uma equipe diversa, formada por talentos LGBTQIAPN+, que compreendem os códigos dessa cultura.
Esse é o ponto de partida perfeito para entendermos a importância de reconhecer, apoiar e amplificar as vozes que surgem desses territórios e dessas comunidades — não apenas como inspiração, mas como protagonismo real. E quando olhamos para a história da cultura ballroom, vemos como essas expressões nascidas das margens também se tornam estruturas de acolhimento, pertencimento e inovação. Muito antes de ganharem status na moda ou na mídia, as balls eram espaços onde pessoas negras, latinas e LGBTQIAPN+ podiam existir plenamente, performar, criar suas narrativas e serem vistas com dignidade e afeto. Era ali que suas subjetividades ganhavam corpo, voz e brilho, longe dos olhares que as marginalizavam no cotidiano.
O que une essas trajetórias é o fato de que todas elas nascem da margem e ganham o mundo. E, ao fazerem isso, desafiam a ideia de que o centro é o único lugar de onde se pode criar. Vivemos a era da globalização de narrativas emergentes, e é urgente que lideranças criativas tragam essas vozes para as mesas de decisão.
Foi assim com o filme Paris is Burning, que documentou essa cultura sob a perspectiva de quem a vive. E é assim com Telfar Clemens, que transforma sua marca em um projeto coletivo de democratização do luxo. A Telfar é o exemplo vivo de como criar desejo sem elitismo, de como pertencer é um direito e não um privilégio.
Quando as marcas entendem que criar comunidade é mais valioso que capturar atenção, começam a construir comunicações mais autênticas e impactantes. E isso passa, necessariamente, por ter pessoas periféricas em cargos de liderança, influenciando decisões, guiando narrativas, oferecendo novas estéticas, ritmos e estratégias.
Como disse Kristy Tillman no livro Extra Bold:
“Designers estão criando cultura. [...] Em vez de dizer 'somos designers, temos poder', vamos reconhecer que estamos criando um futuro. Como vamos envolver o pessoal nisso? De que maneira nossas identidades têm um papel nisso? Quem está construindo o futuro, e para quem o estamos construindo?”
O atrito criativo que nasce da pluralidade é o que impulsiona os futuros mais justos, diversos e instigantes. Quando diferentes realidades, vozes e perspectivas se encontram, algo novo é criado — algo que não apenas representa o mundo, mas o transforma.
O futuro não é apenas descentralizado. É periférico, coletivo e, acima de tudo, criativo. E já está em curso.
Texto incrível!!!
lovvv